Hoje no curso de sommelier eu aprendi sobre a origem do enochatus vulgaris.
Meu primeiro contato com o tal "mundo do vinho" foi quando tive um cliente que produz vinho em La Rioja, Espanha. Queria trazer o produto para o mercado brasileiro.
Buscamos o Alex no aeroporto. Um espanhol simpático, diretor de uma vinícola conceituada, trazendo na mão seis preciosas ampolinhas. Naquele tempo podia. Hotel na Savassi, muito bom e bem localizado. Mas na primeira noite o Alex me liga pelas 22 horas, pedindo encarecidamente que eu lhe conseguisse um hotel cujo ar-condicionado não fizesse tanto ruído. Que sujeito exigente, pensei... mas ok, mudamos de hotel. Ainda na Savassi.
Tendo em vista que ele ficaria por uma semana, comecei a orientá-lo sobre as atrações para as horas vagas: livrarias, shopping, lojas. E ele respondeu: Vick, eu não vou sair à rua. Mas aí já era demais. Como assim o sujeito é tão cheio de coisas que nem à rua ele sai? Como ele vive percorrendo o mundo e não sai do hotel? Tive que perguntar. E ele contou: olha, eu moro em uma cidade que tem menos de 400 habitantes. Álava é murada; não entram carros. Eu cresci no campo, cheirando bosta de vaca, meus amigos são os mesmos até hoje. Por isso não gosto da rua. Tenho receio.
Então o Alex começou a me contar que a família dele, que cultivava uvas, faliu, e todos se mudaram para a cidade. Menos ele, que queria muito trabalhar com aquilo. Aí ele começou a trabalhar na colheita em alguma vinha. Depois estudou agronomia, depois montou uma toneleria. Aí foi trabalhar nessa vinícola e foi subindo até ser diretor. Simples assim. Como a vida dele.
Durante os grupos-foco que fizemos, eu ficava sentada ao lado dele, admirada, ouvindo "procure a manteiga"; "encontre o couro". E cheirava, cheirava, e nada. Até encontrar as famosas frutas vermelhas foi um parto. Pronto. Decidi que eu precisava estudar aquilo direito, senão nunca ia conseguir compreender como funcionam a mente e o coração de um cliente do Alex.
O projeto do vinho chegou ao fim, mas o retrogosto permaneceu. Continuei a estudar ali, aqui e fui percebendo que, mesmo tendo rinite alérgica, eu podia perceber milhares de cheiros que antes não conhecia. E comecei a cheirar tudo, de maneira que hoje quando estou na sala sei que alguém no quarto mexeu na coleira do cachorro, que tem o cheiro do xampu dele, que por sua vez tem cheiro de alfavaca. Passei a prestar atenção ao cheiro das ruas de BH em setembro, que se parece um pouco com o cheiro das avenidas de Brasília quando começa a seca, mas é infinitamente melhor. Eu sei que parece estranho, mas não pare de ler, por favor. Parece que a gente descobre outro mundo quando se concentra no cheiro e no gosto.
Foi por isso que eu resolvi me dar de presente este curso. Não tenho pretensão nenhuma com ele, só acho que esse negócio é bonito demais e eu mereço. Saio de lá todos os dias com os olhos brilhando.
Temos assistido vídeos com depoimentos de produtores de vinho da Europa, e foi aí que eu descobri que o enochato deve ser originário das Américas. Porque, como o Alex, produtores dos vinhos mais espetaculares do mundo são pessoas incrivelmente simples e sábias. Hoje por exemplo vi um moço da Alsácia, de jeans, camiseta surrada, barba por fazer, dizendo que o vinho é a forma mais cultural de exprimir a natureza de um lugar. Por isso a maioria dos vinhos europeus têm nomes de regiões: Rioja, Cotes du Rhone, Champagne... O moço dizia também o seguinte: São Bento foi o fundador da viticultura. Ele pregava o silêncio, a renúncia, a abstinência, típicas da vida dos monges, e associou a isso o cultivo das uvas. Hoje vemos que os melhores vinhos do mundo são aqueles produzidos por videiras cujas raízes são mais profundas. O moço da Alsácia dizia ainda que é preciso que a videira atravesse metros de cascalho para atingir o máximo de profundidade, porque na superfície tudo é instável e muda ao sabor do vento: um dia chove, no outro faz sol, venta... e a árvore, para produzir bom fruto, não tem que olhar para o céu, mas encontrar a tranquilidade e a paz das profundezas. Eles respeitam a terra, a planta, falam da uva como se fosse gente.
Nesses anos de curiosidade sobre vinhos, nunca vi alguém no continente Americano ser tão simples e tão profundo. Não sei se é por causa desse diacho dessa mania que a gente tem de achar que tudo que é da Europa é chique... por aqui vinho está virando símbolo de arrogância, de uma enochatice sem tamanho. Eu mesmo já fiz foi chuva de vinho sacudindo minhas taças perto do pessoal da minha casa... E você já reparou que os vinhos do novo mundo não têm o nome da terra? Aqui se batizam com o nome da uva... europeia, naturalmente. Eu não sei o motivo.
Com esse hábito de ficarmos nos pavoneando com taças de vinho, estamos perdendo a oportunidade de admirar o espetáculo que é o essa relação de respeito e aprendizado entre homem e natureza. E graças a essa nossa mania de só valorizar o que vem do outro lado do Atlântico, só conseguimos pensar em Proseccos e Cavas e perdemos a oportunidade de ver nascer e crescer, na nossa terra, vinhos que a Europa, com seus tantos séculos de experiência, já está conhecendo e aprendendo a respeitar.
Um dia a gente aprende... ser simples é muito complicado. Escrever posts enxutos, mais complicado ainda.