terça-feira, 16 de março de 2010

O Elo Perdido


Hoje no curso de sommelier eu aprendi sobre a origem do enochatus vulgaris.
Meu primeiro contato com o tal "mundo do vinho" foi quando tive um cliente que produz vinho em La Rioja, Espanha. Queria trazer o produto para o mercado brasileiro.

Buscamos o Alex no aeroporto. Um espanhol simpático, diretor de uma vinícola conceituada, trazendo na mão seis preciosas ampolinhas. Naquele tempo podia. Hotel na Savassi, muito bom e bem localizado. Mas na primeira noite o Alex me liga pelas 22 horas, pedindo encarecidamente que eu lhe conseguisse um hotel cujo ar-condicionado não fizesse tanto ruído. Que sujeito exigente, pensei... mas ok, mudamos de hotel. Ainda na Savassi.


Tendo em vista que ele ficaria por uma semana, comecei a orientá-lo sobre as atrações para as horas vagas: livrarias, shopping, lojas. E ele respondeu: Vick, eu não vou sair à rua. Mas aí já era demais. Como assim o sujeito é tão cheio de coisas que nem à rua ele sai? Como ele vive percorrendo o mundo e não sai do hotel? Tive que perguntar. E ele contou: olha, eu moro em uma cidade que tem menos de 400 habitantes. Álava é murada; não entram carros. Eu cresci no campo, cheirando bosta de vaca, meus amigos são os mesmos até hoje. Por isso não gosto da rua. Tenho receio.

Então o Alex começou a me contar que a família dele, que cultivava uvas, faliu, e todos se mudaram para a cidade. Menos ele, que queria muito trabalhar com aquilo. Aí ele começou a trabalhar na colheita em alguma vinha. Depois estudou agronomia, depois montou uma toneleria. Aí foi trabalhar nessa vinícola e foi subindo até ser diretor. Simples assim. Como a vida dele.

Durante os grupos-foco que fizemos, eu ficava sentada ao lado dele, admirada, ouvindo "procure a manteiga"; "encontre o couro". E cheirava, cheirava, e nada. Até encontrar as famosas frutas vermelhas foi um parto. Pronto. Decidi que eu precisava estudar aquilo direito, senão nunca ia conseguir compreender como funcionam a mente e o coração de um cliente do Alex.

O projeto do vinho chegou ao fim, mas o retrogosto permaneceu. Continuei a estudar ali, aqui e fui percebendo que, mesmo tendo rinite alérgica, eu podia perceber milhares de cheiros que antes não conhecia. E comecei a cheirar tudo, de maneira que hoje quando estou na sala sei que alguém no quarto mexeu na coleira do cachorro, que tem o cheiro do xampu dele, que por sua vez tem cheiro de alfavaca. Passei a prestar atenção ao cheiro das ruas de BH em setembro, que se parece um pouco com o cheiro das avenidas de Brasília quando começa a seca, mas é infinitamente melhor. Eu sei que parece estranho, mas não pare de ler, por favor. Parece que a gente descobre outro mundo quando se concentra no cheiro e no gosto.

Foi por isso que eu resolvi me dar de presente este curso. Não tenho pretensão nenhuma com ele, só acho que esse negócio é bonito demais e eu mereço. Saio de lá todos os dias com os olhos brilhando.

Temos assistido vídeos com depoimentos de produtores de vinho da Europa, e foi aí que eu descobri que o enochato deve ser originário das Américas. Porque, como o Alex, produtores dos vinhos mais espetaculares do mundo são pessoas incrivelmente simples e sábias. Hoje por exemplo vi um moço da Alsácia, de jeans, camiseta surrada, barba por fazer, dizendo que o vinho é a forma mais cultural de exprimir a natureza de um lugar. Por isso a maioria dos vinhos europeus têm nomes de regiões: Rioja, Cotes du Rhone, Champagne... O moço dizia também o seguinte: São Bento foi o fundador da viticultura. Ele pregava o silêncio, a renúncia, a abstinência, típicas da vida dos monges, e associou a isso o cultivo das uvas. Hoje vemos que os melhores vinhos do mundo são aqueles produzidos por videiras cujas raízes são mais profundas. O moço da Alsácia dizia ainda que é preciso que a videira atravesse metros de cascalho para atingir o máximo de profundidade, porque na superfície tudo é instável e muda ao sabor do vento: um dia chove, no outro faz sol, venta... e a árvore, para produzir bom fruto, não tem que olhar para o céu, mas encontrar a tranquilidade e a paz das profundezas. Eles respeitam a terra, a planta, falam da uva como se fosse gente.

Nesses anos de curiosidade sobre vinhos, nunca vi alguém no continente Americano ser tão simples e tão profundo. Não sei se é por causa desse diacho dessa mania que a gente tem de achar que tudo que é da Europa é chique... por aqui vinho está virando símbolo de arrogância, de uma enochatice sem tamanho. Eu mesmo já fiz foi chuva de vinho sacudindo minhas taças perto do pessoal da minha casa... E você já reparou que os vinhos do novo mundo não têm o nome da terra? Aqui se batizam com o nome da uva... europeia, naturalmente. Eu não sei o motivo.

Com esse hábito de ficarmos nos pavoneando com taças de vinho, estamos perdendo a oportunidade de admirar o espetáculo que é o essa relação de respeito e aprendizado entre homem e natureza. E graças a essa nossa mania de só valorizar o que vem do outro lado do Atlântico, só conseguimos pensar em Proseccos e Cavas e perdemos a oportunidade de ver nascer e crescer, na nossa terra, vinhos que a Europa, com seus tantos séculos de experiência, já está conhecendo e aprendendo a respeitar.
Um dia a gente aprende... ser simples é muito complicado. Escrever posts enxutos, mais complicado ainda.

4 comentários:

  1. OI Vick, que maravilha descobrir seu blog!!!!
    Muito legal seu texto (como sempre, né?), fiquei louca pra fazer um curso desses tbém, mas sempre fico pensando nos enochatos...rs É pq sou pirada com cheiros e gostos e acho que eu ficaria bem feliz em conhecer melhor essa arte.
    Saudades, beijos, vou acompanhando tudo por aqui, pq sou sua "mega fã", rsrsrs...
    Beijos, QUel

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  2. Ei Raquelzita, obrigada pelo comentário!

    Puxa, ia ser super legal ser sua coleguinha de novo, viu... poderíamos pirar bastante juntas!

    Estou de volta a BH, vamos combinar de tomar um... a propósito... vinho?

    Beeeeijos

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  3. Ai,ai,ai...tô de olho em você!!!Se ficar chata vai ver comgigo! E nossos Proseccos baratinhos? Terão lugar na sua vida? Fiquei com ciúme!

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  4. Ahaá!!! Não são Proseccos (se bem que no Brasil também tem uva prosecco, hehehee), são todos brasileiros... peguei no pulão...
    Mas quem disse que eu não sou chata... meu Deus não me aguento, só me jogando no maaaaaaaaaaaaaaaar...

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